Hellblade: Senua’s Sacrifice é uma das experiências mais singulares que já tive nos videogames. O ambicioso título da Ninja Theory (Heavenly Sword, Enslaved) é uma narrativa sensível e intimista como poucas, e aborda temas como medo, morte, tristeza e agonia de forma inteligente e bastante corajosa.

Você está na pele de Senua, uma guerreira celta que parte em uma jornada para a terra dos nórdicos com o intuito de salvar a alma de seu amado Dillion, que foi brutalmente assassinado por um bando de saqueadores enquanto ela estava fora. Entretanto, o que torna sua missão ainda mais extenuante é o fato de que Senua sofre com transtornos psiquiátricos desde a infância, e a condição se agravou ainda mais após a morte de seu companheiro.

Doenças mentais são um grande tabu na sociedade e obras que tratam do tema são raras até no cinema, o que faz o título da Ninja Theory algo completamente único no âmbito dos games. O estúdio contou com a ajuda de profissionais em psiquiatria e ouviu diversos pacientes que sofrem de psicose e esquizofrenia, algo que justifica o fato de Senua ser uma personagem tão bem construída. Magistralmente interpretada por Melina Juergens – estreante no papel de atriz -, a protagonista é frágil e ao mesmo tempo cheia de determinação, e o sofrimento causado por sua doença é tão devastador que me fez refletir por um bom tempo sobre as pessoas que convivem com esta condição na vida real.

Durante quase todo o tempo, a guerreira – e consequentemente o jogador – ouve vozes sussurrando em seu ouvido. Conhecidas como “As Fúrias”, elas servem como observadoras e críticas das ações de Senua, assim como expositoras de seu estado físico e emocional. As vozes debocham, duvidam e questionam, mas também elogiam, comemoram e encorajam, às vezes tudo ao mesmo tempo. Embora sejam cruéis e irritantes de vez em quando, as Fúrias fazem o jogador pensar constantemente sobre como Senua está se sentindo, o que ajuda ainda mais a criar um laço de empatia com a personagem. Sob o aspecto de game design, as vozes servem também para guiá-lo através do mundo – já que Hellblade não conta com nenhum hud ou elemento gráfico na tela -, para ajudar na resolução de quebra-cabeças e dar informações durante os combates, como a direção de um ataque surpresa ou o quão perto da morte você está. É um dos trabalhos de design de áudio mais criativos e brilhantes já feitos em um videogame, portanto jogue com o melhor fone de ouvido que tiver.

Além das vozes, a psicose de Senua também se manifesta através de alucinações visuais, mais uma vez criadas de forma competente pela Ninja Theory com o auxílio de psiquiatras e pacientes. Hellblade é um show de cenários bonitos, e seu escopo reduzido, juntamente com a tecnologia inovadora de captura de movimentos, ajuda bastante na qualidade gráfica do game, que é bastante impressionante.

Hellblade
As expressões faciais de Senua estão entre as mais realistas desta geração

Entre a Mente e a Espada

Para chegar aos portões de Helheim, onde está presa a alma de Dillion, Senua precisa resolver quebra-cabeças que abrem o caminho para novas áreas. A predominância dos enigmas é encontrar runas escondidas pelo cenário, que podem estar em qualquer coisa, desde desenhos na parede até na sombra formada por galhos de uma árvore. Entretanto, alguns ambientes possuem elementos bastante criativos que tornam as coisas mais interessantes, como ilusões e portais para outros mundos. Estes momentos acabam compensando a falta de inspiração dos quebra-cabeças mais simples.

No caminho entre um puzzle e outro, existem totens espalhados que contam histórias sobre a mitologia nórdica, narradas por uma voz na cabeça de Senua que faz o papel de NPC. Os contos adicionam um motivo para explorar levemente os cenários, já que Hellblade é uma experiência curta e completamente linear em sua maior parte.

Complementando a jogabilidade, existem batalhas esporádicas que dão um toque de ação ao game, equilibrando a experiência como um todo. Os controles são simples: há um botão de ataque fraco, forte, quebra de guarda, defesa, esquiva e foco (uma habilidade especial que deixa tudo em câmera lenta e só pode ser utilizada de tempos em tempos). O combate funciona como uma dança, sendo bastante satisfatório desviar e bloquear nos momentos certos. Embora não seja brilhante, ele é bastante prazeroso, sendo desafiador na medida certa e muitas vezes bem intenso.

Hellblade

Hellblade não é o melhor jogo de ação já feito, mas não consigo imaginar como poderia ser melhor dentro de sua proposta. Trata-se de uma obra vinda de um estúdio independente, produzida por um time de treze pessoas, com orçamento limitado, e ainda sim tecnicamente brilhante. Todavia, sua abordagem sobre a psicose é o que o torna realmente especial.

Trata-se de uma história sobre abuso e violência, e como a ignorância pode destruir a vida de alguém. Sobre perdas e a dificuldade de seguir em frente, mas também demonstra como o amor pode ser importante para uma pessoa com problemas mentais. Hellblade mostra como é difícil a convivência com alguém nestas condições: Senua muitas vezes precisa desesperadamente de ajuda para lidar com a doença, mas vive com o constante medo de machucar aqueles que ama. “As piores batalhas são aquelas que enfrentamos dentro de nossas próprias mentes”, como Dillion não cansa de nos lembrar.

Após a rolagem dos créditos Hellblade me deixou com lágrimas nos olhos, processando o que tinha acabado de experienciar e sem vontade de colocar outro game no console durante algum tempo. Tudo que queria era começar a jornada de Senua novamente e procurar por outros detalhes de sua história, para assim tentar entender um pouco mais de sua mente.

Videogames são arte, no final das contas.